sábado, agosto 24, 2002

Eles pedem socorro


por Paulo Pereira Lima

Um dos últimos povos nômades do Brasil, os auás-guajás são ameaçados por fazendeiros do Maranhão. Os índios lançam um apelo; nós, uma campanha.

Vistas de um satélite, as áreas indígenas Alto Turiaçu, Auá e Caru, no norte do Maranhão, parecem três manchas verdes. Na segunda, porém, é possível ver também uma extensa faixa marrom, o que significa área desmatada numa região habitada tradicionalmente pelo povo auá-guajá. São 37.970 hectares, o equivalente à metade de São Luís, a capital do Estado.

As terras estão no município de Zé Doca e a suposta proprietária é a Agropecuária Alto Turiaçu Ltda., que teria adquirido o imóvel do Instituto de Terras do Maranhão, o Iterma, em 1982. "Foi tudo em boa-fé", explica o administrador Cláudio Donizete Azevedo. "A Funai, Fundação Nacional do Índio, inclusive me deu um atestado administrativo afirmando que não tinha índios por lá."

Mas há quem conteste essa história. "Essa certidão não tem valor algum", acusa o missionário comboniano Cláudio Bombieri, que há mais de vinte anos acompanha de perto a luta dos índios do Estado. "O governo maranhense não poderia ter vendido terras que não são suas, pois, segundo a Constituição, terras indígenas pertencem à União." A favor dos índios estão três laudos antropológicos. O mais recente é o de Eliane O?Dwyer, da Universidade Federal Fluminense, pedido pelo juiz José Carlos Madeira, da 5» Vara Federal em São Luís. É com esse e outros documentos que Madeira deverá decidir em outubro se a área ocupada pela agropecuária se encontra em território indígena.

Na região, os auás são os únicos a não ter sua terra demarcada, "o que vem colocando em risco a vida desses índios, um dos últimos povos nômades do Brasil", denuncia o missionário. Eles somam uns trezentos e reivindicam uma área de 118.000 hectares. Caçam, pescam e coletam castanhas e frutas. A quem pensa que é muita terra para pouco índio, Bombieri responde: "Por dependerem da caça e coleta, eles precisam de um território contínuo para perambular, intato e livre de danos ambientais".


Ferrovia Carajás
Os auás já foram agricultores, mas há cerca de duzentos anos foram forçados a adotar o nomadismo para escapar da perseguição dos brancos. O primeiro contato com um grupo deles aconteceu em 1973. "A maioria era sobrevivente de massacres executados por fazendeiros e madeireiros. Muitos perderam parentes próximos ou foram separados de suas famílias", afirma Bombieri, que já coordenou o Conselho Indigenista Missionário maranhense.

Atualmente, são cerca de 240 propriedades particulares na área, com nome e sobrenome de seus supostos donos, cadastradas pela Funai, o INCRA e o Iterma em 1999. Além de criadores de gado como Azevedo, há também outros fazendeiros, madeireiros e colonos.

Testemunha dessa "tragédia" é o jovem To?o Guajá, uma das lideranças da aldeia Juriti: "Eu amo a floresta, mas vejo os brancos caçando por toda parte e tocando fogo em tudo. Eles vão acabar com este lugar".
A invasão tornou-se mais intensa a partir de 1950, devido às diversas frentes de expansão econômica. Primeiro chegaram fazendeiros paulistas, goianos e baianos para explorar madeira e estabelecer novas fazendas. Depois veio a rodovia BR-222, que liga as cidades de Santa Inês e Imperatriz.

A situação piorou em 1985, com a construção da Ferrovia Carajás da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), que transporta minérios de ferro e manganês da serra dos Carajás, no Pará, até São Luís. Ela corta o território por onde perambulam os auás. Para esse projeto, o governo brasileiro obteve um empréstimo de 900 milhões de dólares do Banco Mundial e da Comunidade Européia com a condição de que fossem demarcadas as áreas indígenas situadas ao longo da estrada de ferro. No caso auá, houve completo descaso. Segundo jornais locais, há indícios de que grandes grupos econômicos estejam interessados na região. Supõe-se que seja também por isso que, nestes últimos vinte anos, fracassaram diversas tentativas de pressão política.


Campanha
É por esse motivo que, em janeiro passado, a organização não-governamental inglesa Survival International denunciou o Governo Federal e a CVRD à Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas.
Atualmente, o principal entrave é uma ação movida por Azevedo, também presidente da Associação dos Criadores do Estado do Maranhão, que reúne 1.800 membros. Em março de 1993, ele obteve liminar contra a demarcação. E ganhou mais do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente, o Ibama: o direito de explorar a madeira e ampliar a pastagem para suas 6.200 cabeças de gado.

"Pedi ao pessoal da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo, um estudo pra ver onde se poderia exercer a vocação pecuária e fazer um plano de manejo florestal, que foi aprovado pelo Ibama", explica o administrador de empresas.

Não é bem "manejo florestal" o que o Ministério Público andou investigando. Por isso, em junho, o procurador da República Nicolau Dino conseguiu anular a decisão do Ibama na Justiça e também estipular uma multa diária de 10.000 reais, caso Azevedo volte a desmatar a área. Independentemente do parecer da Justiça, Azevedo promete recorrer: "Onde vou levar o meu gado?", questiona.

Enquanto o processo se arrasta nos tribunais, está sendo lançada uma campanha em apoio aos auás-guajás. É a "Esse povo quer viver", promovida pelo Instituto Ekos para a Eqüidade e a Justiça, dos missionários combonianos do Nordeste, a Survival Internationa, as revistas Caros Amigos e Sem Fronteiras. Também participam a Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal e a Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. Para colaborar, basta enviar um cartão-postal ao Ministério da Justiça (veja encarte neste exemplar ou peça o seu).


Paulo Pereira Lima é diretor de redação de Sem Fronteiras.

Campanha "Esse povo quer viver":
Tel.: (98) 235-1088; E-mail:ekos@direito.elo.com.br

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