sexta-feira, maio 17, 2002

A fome, segundo Ziegler


por Emir Sader

A fome não foi o único motivo de indignação por parte do representante das Nações Unidas, Jean Ziegler, na sua visita de 18 dias ao Brasil. Ele se indignou igualmente pela contraposição entre uma elite de governo altamente preparada intelectualmente e a falta de disposição para colocar esses conhecimentos a serviço de mudar a indignante situação em que deixam o país. Um governo que, estivesse vivo Josué de Castro, o teria insultado e tentaria desmoralizado como ignorante do que passa no Brasil, da mesma forma que tentou fazer com Jean Ziegler.
Ziegler conhece muito bem o Brasil e a fome no mundo. De seu livro "A fome no mundo explicada a meu filho", ele nos fala dela.
A FAO avalia em seu último relatório em mais de trinta milhões o número de pessoas mortas de fome em 1999 e, para o mesmo período, em mais de oitocentos e vinte e oito milhões os seres atacados pela desnutrição grave e permanente.
Cento e quarenta e seis milhões de cegos vivem nos países da África, da Ásia e da América Latina. Todo ano sete milhões de pessoas, normalmente crianças, perdem a vista, na maioria das vezes por falta de uma alimentação suficiente ou como conseqüência de doenças vinculadas ao subdesenvolvimento.
A FAO elaborou, há mais de quinze anos, um relatório em que observava que o mundo, no estado atual das forças produtivas agrícolas, poderia alimentar sem problemas a mais de 12 bilhões de habitantes, isto é, ao dobro da população mundial atualmente. Alimentar quer dizer dar a cada homem, mulher e criança uma ração equivalente a duas mil e quatrocentas calorias diárias, dado que as necessidades alimentares variam segundo os indivíduos em função do trabalho que realizam e das zonas climáticas de onde provêm.
"Em Crato, no Ceará, ao lado do cemitério católico oficial eu vi um vasto campo semeado de pequenas colinas: "crianças anônimas", me disse Cícero, meu amigo camponês que me recebeu. Crianças anônimas, mortas nos primeiros dias ou semanas de sua chegada a este mundo, de fome, de rubéola, de diarréia ou de desidratação. Seus pais são pobres demais para registrá-las na prefeitura, mesmo se legalmente deveriam tê-lo feito. A prefeitura cobra um real ou dois pelo registro, então o pai, a mãe ou um irmão maior que sobreviveu, pegam o corpinho inerte durante a noite, fazem um buraco no "campo das crianças anônimas" e introduzem o recém-nascido da família.
A cada minuto nascem duzentas e cinqüenta crianças no mundo, cento e noventa e sete delas em um dos cento e vinte e dois países do Terceiro Mundo. Muitos deles chegam a uma dessas zonas de túmulos anônimos pouco depois de seu nascimento.
Atualmente se utiliza um quarto da colheita mundial de cereais para alimentar o gado dos países ricos. As doenças cardiovasculares devidas à super-alimentação provocam entre nós, na Europa, cada vez mais vítimas, enquanto que em todo o Terceiro Mundo os homens morrem de desnutrição.
No Médio Oeste norte-americano e na Califórnia, os bois são alimentados com cereais em imensos recintos climatizados que eles denominam fedd lots, por meio de um sistema eletrônico de distribuição pautada do alimento. A quantidade de milho consumido anualmente pela metade dos fedd lots californianas é mais importante que o conjunto das necessidades de um país como Zâmbia, onde este cereal é um alimento essencial e, em compensação, está devastado por uma subalimentação crônica.
Não conheço nenhum colégio em que o tema da fome, que a cada dia mata mais gente do que todas as guerras juntas do planeta, figure em seu programa. Não existe nenhum tipo de curso em que o problema da fome seja analisado, seja discutido, em que se examinem suas raízes e os meios de acabar com ela.
A FAO está mais ou menos obrigada a mentir sobre as perspectivas de futuro, pois se não o fizesse, os países ricos deixariam de mandar para Roma consideráveis somas de dinheiro, porque deixariam de considerá-las úteis. É uma mentira piedosa. Relatório de 1974 terminava com esta promessa: "Em seis anos não haverá homem, mulher ou criança na terra que tenha que ir para a cama com a barriga vazia." E o Fórum Mundial sobre Alimentos de 1996, em Roma, concluía assim: "No ano 2015 conseguiremos que o número de pessoas que sofrem fome no mundo diminua pela metade". A promessa de 1974 deu no seu contrário: o número de necessitados aumentou. A de 1996 parece que também será falsa.


Emir Sader é jornalista e escritor.

fonte: Caros Amigos

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